A anti-hermenêutica da intervenção militar
Li o artigo de Vladimir Safatle na Folha sobre intervenção militar. Posso concordar com parte do texto, isto é, a crítica ao regime militar e ao fato de os militares fazerem parte do “caos”. Mas, além do erro explícito quanto a referência à Constituição de Weimar (escreveu art. 41, em vez de 48), e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daqueles mesmos que contra a república alemã se voltaram nos anos 30, a sua interpretação do art. 142 da Constituição brasileira é simplesmente absurda. Safatle não sabe o que, no mínimo, é interpretação sistemática? Ou que não se pode interpretar literalmente? Se uma lei diz que é proibido carregar cães na plataforma do trem, não se pode, por isso, carregar um urso. Simples assim. Também não se pode amarrar o sentido do texto a uma suposta intenção legislativa. Ao tomar para si mesmo, como algo indiscutível, a interpretação feita pelos próprios setores a quem ele crítica, contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de ”bomba relógio” ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. Assim, a crítica de Safatle faz uma espécie de recuperação ideológica do que quer criticar. Aliás, pior ainda, mesmo que a intenção dele seja crítica, acaba legitimando e reforçando a tese incorreta e torta de que o art. 142 da Constituição autorizaria que quaisquer Poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para “garantia da lei e da ordem” (sic), de tal modo que “o que virá depois” estaria “legalizado” de acordo com a própria Constituição. Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF); terceiro, o parágrafo único do art. 142 prevê que lei complementar estabelece as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC n. 97, art. 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeira de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que “lei e ordem” devem ser corretamente interpretadas. Por fim, todos sabemos que, numa democracia, não há que se falar em autonomia, ou relativização desta autonomia, da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por esta razão é que somente um Poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e Lei aqui determinam. Ou seja, o artigo de Safatle é um texto equivocado, inadequado e inoportuno. A solicitação dos Poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. Aliás, artigos como o de Safatle dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir “no caos”. Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba. LENIO LUIZ STRECK, professor-titular da Unisinos (RS) e Unesa (RJ), é doutor em direito e membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para [email protected] Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.