‘Algo Infiel’ tem desafio de pensar tradução como performance

ALGO INFIEL (muito bom) AUTORES Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves EDITORA N-1 Edições QUANTO R$ 50 (368 págs.) * Questões fundamentais sobre tradução podem estender-se, de certo modo, a todas as ações e convicções. Falar sobre a busca de superação de Babel é falar sobre tudo, habitualmente convertido em dualidades: corpo/alma, forma/conteúdo, comunicabilidade/incomunicabilidade, determinação/indeterminação, originalidade/reprodutibilidade. O livro “Algo Infiel – Corpo Performance Tradução”, dos atuantes poetas-tradutores Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves, é original: gera um corpo próprio a partir de releituras, recriações, reincorporações do existente. É, sobretudo, infiel a certa noção de fidelidade associada à literatura traduzida. Era uma vez um original; a questão é que o original já era, ao menos como ideia que se sustente. Tudo resulta de um movimento de transformação –ou de tradução. Para o poeta Haroldo de Campos, a tradução seria o “capítulo por excelência de toda possível teoria literária”, já que todas as obras “originais”, analogamente aos textos traduzidos, derivariam de outras, que se sobrepõem durante a criação. Sob a perspectiva da recriação, não se cogita traduzir só o “conteúdo” de um texto. O barqueiro Caronte –mítico condutor de almas– foi usado como metáfora por Henri Meschonnic para falar da tradução apenas “informacional” como travessia de mortos, “aqueles que perderam a memória”. A memória seria atributo da ligação da alma com o corpo: a literatura se perderia ao se reduzir ao plano de seu conteúdo, convencionalmente entendido como a “alma” do texto. O primeiro ensaio de “Algo Infiel” incorpora a imagem de Meschonnic: “[tradução] não como um barco de Caronte atravessando o rio dos mortos, o rio do esquecimento, levando sombras sem memória. Por que levar objetos desmemoriados, almas sem corpos?” Propõe-se a ressurreição de “um todo novo, de corpo e alma”. A obra é ensaística por excelência: lança-se ao ensaio destemido, plural, apontando para diversos campos, e refletindo as necessárias dimensões de incerteza de nosso tempo, bem como a eterna inclusão do alheio. Não se sabe a autoria dos textos, e há excertos de obras cujos autores só se desvelam ao final do volume: de Artaud a Foucauld, de Zumthor a Haroldo de Campos. Os textos ágeis –que abordam da tradição da literatura oral à recriação da performance poética da antiguidade, transitando por temas como a canção e o teatro– enfrentam “o desafio de pensar a tradução como performance e a performance como tradução”, que “é também o de entrar na seara instável dos corpos”. A presença da corporeidade como meio de toda realização associa-se ao transitório e sempre renovado ato de traduzir: um convite-desafio ao leitor para “lançar-se corpo através”.