Atacar o arqueiro, o truque para escapar das flechas

A newsletter do excelente jornal português “Expresso” queixou-se, outro dia, de que “no Brasil começa a ficar difícil acompanhar todas as diligências da polícia e todos os casos em que surge o nome do presidente Temer”. Tem razão, ainda mais depois da nova denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot contra o presidente e quase todos os seus homens de confiança e/ou ministros. Como tenho uma dívida de gratidão com o “Expresso”, pela ajuda que seus jornalistas me deram na cobertura da Revolução dos Cravos (1974), proponho-me a ajudá-los a ver o quadro. Não vou entrar nos meandros jurídicos, já muito bem analisados, no que se refere à denúncia mais recente, pelos professores da FGV Eloísa Machado e Rubens Glezer, em texto desta sexta-feira (15) para a Folha. No geral da Operação Lava Jato, Marcelo Coelho tem feito um relato indispensável, com o seu inexcedível talento habitual. Prendo-me, pois, ao quadro político mais amplo e mais imediato: o que está em curso é uma indecente tentativa, em especial do mundo político, mas não só, de atingir o “arqueiro” Rodrigo Janot, para desviar a atenção das flechas que ele dispara. Na verdade, não é correto fulanizar a ofensiva e restringi-la a Janot. Trata-se, mais amplamente, de procurar atingir o Ministério Público, a Polícia Federal e o juiz Sergio Moro (este no caso específico das flechas contra Luiz Inácio Lula da Silva). Claro que Janot, Moro e a PF não são deuses e, como mortais, cometem erros. Mas mais relevante que os erros dos “arqueiros” é discutir a qualidade das flechas disparadas. E, nesse caso, os fatos –não meras opiniões contra ou a favor– são definitivos. A eles, portanto: 1 – Corruptores, como a Odebrecht, a OAS e a JBS, confessaram. Cometeram crimes e, em alguns casos, estão devolvendo dinheiro ou pagando as multas devidas. 2 – Corruptos, caso de alguns ex-diretores da Petrobras, também confessaram, também estão devolvendo dinheiro. 3 – Do lado político do balcão de negócios em que se transformou a política brasileira, tem-se, agora, a confissão de Antonio Palocci. Com ela, fecha-se o círculo: a Odebrecht confessa que corrompeu e um dos corrompidos (Palocci) admite os “ilícitos”, para usar a expressão de Lula no seu depoimento a Sergio Moro. Tudo somado, têm-se, portanto, flechas da mais alta qualidade, seja qual for o juízo que se faça do “arqueiro”. No caso Temer, se Janot errou ou acertou, não mudam alguns fatos inegáveis, a saber: 1 – Rodrigo Rocha Loures tinha tanto prestígio junto ao presidente que agendou uma conversa noturna e sem registro oficial em pleno Palácio do Jaburu entre Temer e Joesley Batista. O encontro foi confirmado pelo próprio presidente. 2 – Rocha Loures foi flagrado com uma mala de dinheiro, fato igualmente não desmentido, até porque a mala e o dinheiro foram entregues pelo próprio Loures à Polícia Federal. 3 – Por que um empresário daria tanto dinheiro a uma figura em tese secundária como Rocha Loures? Só pode ser para comprar facilidades junto ao governo Temer. Ou, mais amplamente, como está no já citado texto de Eloísa Machado e Rubens Glezer: “A presença (da organização criminosa) na Petrobras, em Furnas, no Ministério da Integração Nacional, no Ministério da Agricultura, na Caixa Econômica Federal e até na própria Câmara era um meio para o esquema de arrecadação de propinas. A história é conhecida: empresas que queriam ser contratadas ou ter uma lei em seu benefício repassavam propina a Temer e seus aliados”. Nem é preciso mencionar outro fato indesmentível: as malas e caixas de dinheiro apreendidas com as digitais de Geddel Vieira Lima, homem de confiança de Temer. Em qualquer país decente, um presidente que está cercado de pessoas denunciadas seguidamente se vê compelido a renunciar. Já no Brasil, prefere atacar o arqueiro. Não é nem original. Na Operação Mãos Limpas na Itália, aconteceu a mesma coisa, conforme o relato de Maria Cristina Pinotti: “Avolumaram-se as denúncias na imprensa sobre abuso de poder nas investigações e foi iniciada uma verdadeira indústria de dossiês, sobretudo contra a figura principal da Operação, o juiz Di Pietro. Em meados de 1994 o conselho de ministros do novo governo aprovou um decreto lei que ficou conhecido com o nome do novo ministro da justiça [Decreto Biondi] ou, popularmente, como decreto ‘salva ladrões’ [salva ladri], que impedia prisão cautelar para a maioria dos crimes de corrupção. Com isso, a maior parte dos presos na Mãos Limpas foi solta, indo para prisão domiciliar, provocando um enorme dano nas investigações”. É o que se busca fazer no Brasil, atacando o “arqueiro” para escapar de suas certeiras flechas. Por ser o Brasil como é, sou capaz de apostar que a indecente manobra acabará dando certo –e a lama continuará escorrendo em abundância no esgoto político.