‘Bingo’ parece testemunho de convertido em programa religioso
Ainda que descreva um drama pessoal, o recém-lançado “Bingo: O Rei das Manhãs” é também um filme sobre a televisão brasileira –tanto a dos anos 1980, período em que se passa a história, quanto a dos dias atuais. O primeiro longa de Daniel Rezende, como se sabe, é inspirado na trajetória de Arlindo Barreto, um dos atores que encarnou o palhaço Bozo no Brasil. Criado nos Estados Unidos no final dos anos 1940, o personagem logo se tornou uma franquia exportada para diversos países. Silvio Santos comprou os direitos de uso do palhaço em 1980. Na sua fase áurea, Bozo ancorou a programação infantil da TVs e, posteriormente, do SBT até 1991. Diversos profissionais encarnaram o tipo neste período. Barreto teve uma carreira errática como ator de filmes pornográficos e de novelas antes de conseguir o papel de Bozo. Nos relatos de sua trajetória, não fica muito claro em que momento começou o uso abusivo de álcool e cocaína. Ele diz que entrou em depressão depois da morte da mãe e de uma separação, na qual se viu afastado do primeiro filho. Em uma entrevista ao site “Notícias da TV”, publicada em outubro de 2015, Barreto conta: “Fiz vários tratamentos pagos pelo SBT, mas não adiantava. Minha alma é que estava doente”. O filme de Daniel Rezende tem como foco exatamente este período conturbado, em que Barreto conquista o papel de Bozo, perde a mãe e se vê afastado do filho querido. Mas não há menção a tratamentos pagos pelo SBT. A preocupação exclusiva de “Bingo: O Rei das Manhãs” é mostrar os danos causados pelo consumo exagerado de bebidas e drogas. Na cena mais chocante, o personagem vê escorrer sangue do nariz enquanto está ao vivo, no centro do estúdio da TV, cercado de crianças, apresentando o programa. Barreto nega que tal fato tenha ocorrido. Escolher a cena mais clichê do filme é difícil. Arriscaria dizer que é aquela em que, bêbado e louco, o personagem olha para uma tela de TV, o equivalente ao espelho, e não se reconhece mais. Ato contínuo, dá um soco na tela, machucando a mão. O personagem será acolhido pela diretora do programa, que é evangélica, e vai se converter. Na cena final, fantasiado como palhaço, prega a palavra de Deus em um culto. No seu exagero, “Bingo: O Rei das Manhãs” lembra muito certos programas religiosos da madrugada, que exibem testemunhos de convertidos. A narrativa é típica: primeiro o sucesso, depois os excessos (de mulheres, bebida e drogas), seguido da queda e, por fim, a conversão redentora. Vale observar que em pelo menos duas entrevistas, Barreto revelou detalhes do seu acordo com os produtores do filme. A “O Globo”, em dezembro de 2016, disse ter exigido que a sua conversão religiosa fosse exibida. “Se o longa ficasse folia por folia não teria propósito. Queria mostrar o poder que Deus tem”, afirmou. Ao site “Notícias da TV” foi ainda mais específico. “No contrato, está estipulado que uma parte do longa [25%] tem que abordar a virada da minha vida”. Visto por muitos como um filme sobre os excessos dos anos 1980,”Bingo: O Rei das Manhãs” parece mais, na verdade, sobre a TV dos dias de hoje. A propósito, levantamento da Ancine (Agência Nacional do Cinema), divulgado dias atrás, registrou que programas religiosos ocuparam 21% do total dos conteúdos exibidos na TV aberta brasileira em 2016. As emissoras que lideram o ranking são: CNT (89.6% da programação), RedeTV! (43,72%), Record (22,89%), Band (16,24%) e Gazeta (15.65%). Assista ao trailer de ‘Bingo’ Assista ao trailer de ‘Bingo’