Brasileira resgata ópera de 300 anos que será encenada em Chicago

Quando tocar seu arquialaúde neste sábado (30) no Studebaker Theatre, em Chicago (EUA), a brasileira Silvana Scarinci, 56, terá muito mais em mente do que as notas certas. Será a coroação de sete anos de uma pesquisa conduzida por ela que resgatou a ópera “Ariane et Bachus”, de Marin Marais, criada para a corte de Luís 14, em 1696, e esquecida pouco depois. Silvana pesquisava outro assunto na Biblioteca Nacional da França, em 2010, quando resolveu esfriar a cabeça consultando um fichário manual de obras no acervo. Foi assim, ao acaso, que se deparou com manuscritos da ópera barroca. “Os musicólogos franceses sabiam da existência dos documentos, mas ninguém trabalhou antes em cima disso”, disse a pesquisadora, que está em Chicago e falou à Folha por telefone. De posse de cópias, ela iniciou uma extensa pesquisa no Lamusa (Laboratório de Música Antiga), dirigido por ela em Curitiba, na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Desde então, mestrandos, doutorandos e graduandos em iniciação científica do laboratório receberam a incumbência de pesquisar sobre o compositor da obra, um trabalho de time mais comum nas ciências exatas e biológicas. A restauração do conteúdo musical, que incluiu um trabalho minucioso de correções e traduções das convenções de época, foi apresentada em versão concertante em Curitiba no ano passado. Mas somente com o interesse da norte-americana Haymarket Opera Company, dirigida por Craig Trompeter, o trabalho ganha uma encenação de porte. São cerca de 60 músicos, cantores e bailarinos no palco e figurinos cuidadosos que remontam aos detalhes barrocos. Silvana foi convidada a tocar o arquialaúde na orquestra durante essa temporada de estreia, que vai até terça-feira (3). Depois, a ideia é publicar a edição crítica da partitura na França, onde negociações estão em andamento. A publicação, que torna a música acessível aos músicos de hoje, foi preparada por Silvana sob a orientação do editor especializado Graham Sadler, do Conservatóro de Birmingham, na Inglaterra, onde ela atualmente faz pós-doutorado. Com duração de três horas, são 300 páginas de música. Na obra, cada modificação da pesquisadora recebe uma anotação com a devida justificativa. TRAMA Na mitologia, Ariadne foi quem ajudou Teseu a derrotar o Minotauro. Mas o amante se apaixona pela irmã dela, Fedra, e a abandona na ilha de Naxos. Sua história tocante fez dela a primeira personagem feminina a protagonizar uma ópera, composta por Claudio Antonio Monteverdi (1567-1643). Dessa, porém, restou apenas um trecho, o “Lamento”, considerado muito poderoso e catártico. Na versão de Marais (1656-1728), cuja vida virou filme em “Todas as Manhãs do Mundo” (1991), o amor entre a mortal Ariadne e o deus Baco, que vem em seu socorro, foi musicado de acordo com a tradição de fins do século 17. No libreto do desconhecido Saint-Jean, surgem em meio ao mito grego uma série de histórias paralelas, confusões amorosas que, segundo Silvana, tornam o conjunto “mais picante”. “Para quem ama Monteverdi, ter uma outra ópera barroca sobre o mesmo tema é um consolo”, conta Silvana. Ela parece não acreditar no seu feito. “É incrível que uma brasileira tenha feito um projeto de reconstituição de uma ópera tão importante.”