Democracia participativa já
Numa República, os governantes, escolhidos pelo povo, são responsáveis diante dele pela gestão dos negócios públicos. Não exercem o poder por direito próprio, constituindo meros mandatários dos cidadãos. Nessa forma de governo, impera a soberania popular, que encontra expressão por meio de representantes eleitos, apartando-se dos regimes autocráticos, nos quais os cidadãos não têm qualquer influência sobre os detentores do poder. A legitimidade dos representantes do povo radica em eleições periódicas, que têm como base o sufrágio universal, igual, direto e secreto. O sistema representativo pressupõe, ainda, a existência de mecanismos que estabeleçam o predomínio da vontade da maioria, com a garantia de que as minorias encontrem expressão no plano político. Para tanto, é preciso assegurar não só um pluripartidarismo autêntico como também a mais ampla liberdade de opinião, de reunião e de associação, além de outras franquias como o voto proporcional. A participação popular hoje, contudo, não ocorre mais apenas a partir do indivíduo, do cidadão isolado, ente privilegiado e até endeusado pelas instituições político-jurídicas do liberalismo. O final da centúria passada e o século 21 certamente entrarão para a história como épocas em que o indivíduo se eclipsa, surgindo em seu lugar as associações, que se multiplicam nas chamadas “organizações não governamentais”, as quais hoje expressam parcela considerável dos múltiplos e complexos interesses que se entrecruzam na sociedade contemporânea. Esse fato, aliado às deficiências da representação política tradicional, deu origem a alguns institutos que diminuem a distância entre os cidadãos e o poder, com destaque para o plebiscito, o referendo, a iniciativa legislativa, o veto popular e o recall, também conhecido como referendo revogatório, que permite ao povo rescindir mandatos eletivos. Os constituintes de 1988, nesse aspecto, empreenderam um enorme salto qualitativo, ainda não suficientemente explorado, que correspondeu à transmudação de uma democracia meramente representativa numa democracia participativa. Sim, porque em praticamente todas as nossas Constituições sempre constou a expressão “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Na atual, operou-se uma mudança sutil, porém significativa, quando se fez constar o seguinte: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ocorre que, embora o texto constitucional vigente tenha incorporado formalmente alguns dos institutos da democracia participativa, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa legislativa, as barreiras antepostas ao seu emprego são tão severas que raras vezes lograram ser implementados. A reforma política em curso no Congresso Nacional, paralisada por falta de consenso, poderia ao menos dar concreção à vontade dos constituintes originários, tornando operantes os instrumentos da democracia participativa já adotados, além de acrescentar aos já existentes o referendo revogatório e o veto popular. Quem sabe assim a vontade dos cidadãos possa ser aferida de modo mais imediato e autêntico, sem prejuízo do aperfeiçoamento futuro dos atuais mecanismos de escolha de nossos mandatários, notoriamente deficientes. PARTICIPAÇÃO RICARDO LEWANDOWSKI é professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP e ministro do Supremo Tribunal Federal PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para [email protected] Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamentos contemporâneo.