Diplomacia da irrelevância
O Brasil poderia ser um importante ator na promoção do diálogo entre governo e oposição na Venezuela. Vale ressaltar: poderia se deixasse de lado a diplomacia de botinadas que adotou em relação ao vizinho e parasse de se colocar, a partir de fora, como parte interessada em disputa que não é sua. Mesmo assim, seria difícil ao atual governo brasileiro -fruto de um golpe parlamentar- ter autoridade para falar em democracia fora de casa, quando não respeita a representação popular na sua. Logo que se apossou do poder, o governo de Michel Temer empreendeu uma virada conservadora em várias áreas, entre elas a política externa. O primeiro servidor de Temer para a área, José Serra, ainda em maio de 2016, criticou asperamente os governos de Venezuela, Cuba, Equador e Bolívia, além do secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia. Todos haviam manifestado estranheza com o golpe no Brasil. Dois meses depois, Serra se movimentou junto à Argentina e ao Paraguai, visando a impedir que a Venezuela assumisse a presidência pró-tempore do Mercosul. O posto é rotativo e exercido sucessivamente pelos membros, em ordem alfabética. O próprio Temer veio a público se explicar: “É preciso cumprir com os requisitos pactuados há quatro anos, que [a Venezuela] ainda não cumpriu”. Outros membros não subscrevem todos os protocolos e requisitos do bloco, mas não tiveram seus direitos questionados. O presidente ainda manteve contato com a oposição interna. Logo após tomar posse no Itamaraty, em março, Aloysio Nunes Ferreira sentenciou: “A Venezuela é uma ditadura”. A frase tem endereço certo: o país estaria descumprindo a clausula democrática do Mercosul, que impõe veto a qualquer membro que apresente “ruptura da ordem democrática”. Curiosa lógica: o chanceler de um governo golpista decide brandir normas de conduta democrática sem levar em conta o que se denomina “lugar de fala”. Em agosto, a Venezuela foi suspensa. A iniciativa se soma à diplomacia do porrete de Donald Trump, que aumentou o cerco econômico e, num excesso verbal, aludiu a uma hipotética intervenção militar. A Venezuela enfrenta grave crise econômica, motivada pela queda do preço do petróleo. O país não conseguiu diversificar seu parque produtivo para escapar das armadilhas de uma economia de enclave que vive ao sabor das oscilações de um único produto no mercado mundial. O câmbio é extremamente volátil e praticamente fez evaporar a moeda nacional. Diante das turbulências, a disputa pelo poder se acirrou, e o país vive uma polarização de consequências imprevisíveis. Tendo realizado quase uma eleição por ano em duas décadas, eliminado o analfabetismo e melhorado todos os indicadores sociais até o início da crise, é preciso forçar muito a realidade para chamar a Venezuela de ditadura-como, aliás, esta Folha faz. Pelo peso internacional que apresenta -quase 40% do PIB da América Latina-, o Brasil poderia desempenhar um importante papel na promoção do entendimento. Na década passada, ações de Fernando Henrique Cardoso e de Lula foram fundamentais para ajudar a garantir um caminho democrático na região. Metendo os pés pelas mãos, o Brasil se torna irrelevante, fomenta a discórdia e age como país que “fala grosso com a Bolívia e fino com os Estados Unidos”, como uma vez definiu Chico Buarque. Já fez mais e melhor e deve voltar a fazê-lo. GILBERTO MARINGONI é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e autor, entre outros, de “A Venezuela que se inventa – Poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” e “A revolução venezuelana” PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para [email protected] Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamentos contemporâneo.