Em povoado paraguaio, ceramistas viviam entre tradição e modernidade

Em 1975, conheci Juana Marta Rodas e sua filha, Julia Isídrez, duas ceramistas de Itá, povoado próximo de Assunção, no Paraguai. Embora eu não soubesse à época, esse encontro, que seria seguido por muitos outros, marcaria um dos momentos do processo que, mais tarde, desembocaria na criação do Museu do Barro. Juana e Julia viviam numa residência composta de dois espaços, dois mundos. O primeiro, marcado pela tradição e pela memória, funcionava numa casa com teto de sapê e paredes de barro; esse espaço demarcava a zona doméstica. O segundo, que traduzia a transição da região à modernidade, ocupava uma casa provida de eletricidade, paredes com azulejos e cobertura de telhas. Um modelo de modernização acelerada e desigual avançava sobre Itá. Seguindo o caminho da estrada de asfalto, o casco urbano do antigo povoado se rasgara e partira ao meio a paisagem, que começou a ser outra. Trabalhando com as ceramistas do lugar, eu percebi que essa expansão encerrava dois riscos imediatos à produção de sua arte. Um deles se devia a um projeto agressivo de transformações técnicas ditas “modernizadoras” promovido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sem consulta à comunidade local nem avaliação de seu impacto cultural e ambiental. O outro era causado pela tentação que emigrar a Buenos Aires representava para as mulheres jovens. Naquela época, a necessidade de mão de obra barata para o serviço doméstico levara à redução do preço das passagens para a capital da Argentina. Julia se sentiu atraída por essa possibilidade e considerou seriamente abandonar a cerâmica. Naquele momento, já estava sendo consolidado o Museu do Barro, que deu forte apoio à ceramista na logística de produção e de venda de seu trabalho. Segundo Julia, esse respaldo foi determinante para sua decisão de permanecer em Itá. Desde então, Juana Marta e sua filha conseguiram afirmar uma cerâmica capaz de, ao mesmo tempo, desenvolver as técnicas da antiga tradição guarani e apropriar-se de novas imagens. Assim, o trabalho dessas duas mulheres, desenvolvido entre a casa de teto de sapê e a de telhas, se enriquece com naturalidade e força graças às imagens estranhas aproximadas pela modernidade periférica, gerando como resultado um repertório que integra diversos elementos numa obra que constitui uma das expressões mais seguras e fortes da arte paraguaia. Dona Juana Marta morreu alguns anos atrás, em 2013; Julia leva seu trabalho adiante com o dobro do empenho. Independentemente do enorme valor que dou ao trabalho de ambas, o fato de conhecê-las e de ter participado desde então desse mundo duplo –que, no fundo, é sempre um só e cabal– constitui uma das experiências pessoais mais ricas que vivi no mundo da cultura do Paraguai. OSVALDO SALERNO, 65, artista visual, é diretor do Museu do Barro e diretor-geral do Patrimônio Cultural da Secretaria Nacional de Cultura da Presidência da República do Paraguai. CLARA ALLAIN é tradutora.