Fluido, estudo enlaça olhar fotográfico e matéria humana

PARA ENTENDER UMA FOTOGRAFIA (ÓTIMO) AUTOR John Berger EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 59,90 (264 págs.) * Se as reflexões de John Berger sobre fotografia contêm um aspecto aparentemente obsoleto, este é a hipótese de que a fotografia seria percebida cada vez menos como uma arte e cada vez mais como manifestação dos enigmas da visibilidade. Não como uma linguagem artística, e sim como uma afirmação do olhar humano em determinada situação e determinado momento. Se a crença de Berger de que a fotografia se libertaria dos discursos estéticos pode ser desmentida pela ostensiva valorização da fotografia no campo artístico, por outro lado seu modo de interrogar a matéria visual e a construção de sentido visual no material fotográfico estão em perfeita consonância com reflexões desenvolvidas nas últimas décadas no campo dos estudos visuais, da cultura visual e em grande parte das recentes teorizações sobre a natureza e o funcionamento das imagens. No formidável conjunto de ensaios de “Para Entender uma Fotografia”, organizado por Geoff Dyer e publicado pela Companhia das Letras, Berger analisa, com a desenvoltura habitual, as frágeis e intensas alianças entre o olhar fotográfico e a matéria humana. Diferentes ideias sobre a vocação da fotografia circulam ao longo do livro: fotografia como interrupção, afecção do olhar, captação do inesperado, cardiograma, sutura, ampliação do histórico em direção ao vivido e vice-versa. O livro revela um estilo reflexivo de Berger e uma escrita ensaísta que apostava nos enlaces entre subjetividade, literariedade e reflexão teórica. Isso fica claro na opção pela estrutura dialógica no texto sobre Cartier-Bresson, mas também no dispositivo epistolar que Berger incorporou aos ensaios. Há ainda sua predileção por formas breves, aqui uma reflexão de só duas páginas sobre André Kertész, mostram que a fotografia é capaz de produzir uma compreensão própria do que vem a ser a leitura e o leitor a partir de seus gestos. Aborda a dimensão documental da fotografia e sua capacidade de descrever o privilégio social a partir da inadequação dos ternos sobre corpos de camponeses alemães registrados por August Sander. O cotejo da célebre imagem de Che Guevara assassinado com a “Aula de Anatomia” de Rembrandt e “Cristo morto” de Mantegna demonstra que as dos mortos são culturalmente utilizadas como exemplo ou advertência, além de sinalizar, no mesmo ensaio, o quanto fotos de agonia produzem um tipo de gozo contemporizador, politicamente pernicioso. O diálogo declarado com ideias de Susan Sontag a respeito da fotografia é sinal de sua generosidade e honestidade intelectual. A antologia pode ser lida ainda como testemunho de uma inteligência intuitiva capaz de tornar perceptível a percepção por meio de uma elaboração conceitual clara e fluida, capaz de comunicar ao leitor não especialista. Suas frases nos colocam em contato direto com a energia do seu pensamento, preciso e leve, mas nunca trivial. O resultado é um livro que, ao analisar fotografias, expõe a delicadeza e a complexidade das operações imagéticas, da difícil relação entre olhar e dizer, sentir e compreender.