Ganhador do Nobel de Literatura põe leitor em terreno movediço

Com uma prosa concisa e extremamente controlada, os romances de Kazuo Ishiguro geralmente trazem um narrador não confiável que leva a narrativa na rédea curta, buscando se proteger dos fatos narrados à medida em que os revela a conta gotas. A ele, interessam sobretudo os temas da memória, da internalização dos mecanismos de repressão e de um certo desconforto com suas escolhas de vida e com seu próprio papel na história. Em sua obra-prima, “Os Vestígios do Dia” (1989), um mordomo atavicamente apegado às tradições é atirado em um mundo em que elas importam muito pouco, em geral pelos motivos errados. No plano de fundo da história do criado que não sabe lidar com seu novo patrão americano, estão o entreguerras, o flerte britânico com o fascismo, a colonização inglesa e a guinada que alçaria os Estados Unidos ao posto de potência mundial, relegando sua antiga metrópole ao segundo plano. O livro faz parte de uma espécie de trilogia sobre a Segunda Guerra, junto com seus dois primeiros romances, “Uma Pálida Visão dos Montes” (1982) e “Um Artista do Mundo Flutuante” (1986). O primeiro traz as memórias de uma dona de casa de Nagasaki que abandona o marido japonês para se casar com um jornalista britânico, levando consigo sua primeira filha. Ainda muito jovem, a garota se suicida, causando na mãe uma espécie de culpa por ter achado que poderia virar as costas para o horror da bomba atômica e seguir uma vida confortável no exterior. Já o segundo traz um pintor japonês que fazia obras exaltando o nacionalismo e que agora precisa ressignificar sua própria trajetória, uma vez que os valores que ele ajudou a divulgar tiveram consequências trágicas. A esses três livros iniciais dedicados às implicações da Segunda Guerra poderíamos acrescentar um quarto romance: “Não Me Abandone Jamais” (2005). A história se passa numa Inglaterra paralela em um período correspondente ao pós-guerra. Nela, o autor se pergunta “como o século 20 teria sido se os incríveis progressos que ocorreram na física nuclear e culminaram na criação das bombas atômicas e de hidrogênio tivessem ocorrido no campo da biologia, mais especificamente no da clonagem”, como explica em uma entrevista. A resposta parece ser a de que criaríamos algo tão nefasto quanto a bomba. No caso, que usaríamos a clonagem para criar uma casta de pessoas vistas como sub humanas e cuja única atribuição seria nascer e amadurecer para terem seus órgãos retirados e destinados a transplantes. Aqui, a esterilidade da bomba ressurge na esterilização dos clones, incapazes de se reproduzirem. A ideia de uma superioridade intrínseca migra da raça ou do sangue para o fato de ser ou não clonado. A ética de servir e de se anular perpassa o orgulho dos clones em resistir ao maior número possível de cirurgias de retirada antes de morrerem, de modo a serem utilizados o máximo possível. Nesse livro de retomada enviesada do tema da Grande Guerra, é como se Ishiguro tentasse mostrar que pairava naquele período uma lógica problemática que se concretizaria num grande gesto de violência de um jeito ou de outro. Recebido pela crítica imediata como um “autor japonês”, uma pecha que volta e meia ainda surge em suas resenhas, o próprio Ishiguro se considera um “escritor internacional” e situa suas principais influências literárias na tradição ocidental, particularmente nos grandes escritores britânicos e russos do século XIX como Dostoiévski (1821 – 1881), Tchékov (1860 – 1904), Charlotte Brontë (1816 – 1855) e Charles Dickens (1812 – 1870). Com efeito, os romances de Ishiguro pouco ou nada ressoam da tradição narrativa nipônica: mesmo “Uma Pálida Visão dos Montes” e “Um Artista do Mundo Flutuante” são livros fortemente baseados em enredo e em personagens individualizadas e tridimensionais. Os aspectos da obra de Ishiguro que mais costumam chamar atenção são a forma como ele tematiza a memória, seu controle da narrativa, sua prosa concisa, elíptica e esparsa, o modo como ele consegue deixar o leitor em um terreno muito movediço em que quase nada pode ser afirmado com certeza, seu uso original e perturbador do narrador não confiável e de panos de fundo históricos sólidos e bem pesquisados, ainda que o autor afirme dar pouca importância à precisão histórica de seus romances. Seus temas principais são a dignidade, a memória, a passagem do tempo, e a falta de sintonia com o mundo exterior, com boa parte de sua crítica enveredando pelo caminho dos estudos pós-coloniais e da psicanálise.