Livro ‘No seu Pescoço’ desfaz representação uniforme da África

NO SEU PESCOÇO (ótimo) AUTORA Chimamanda Ngozi Adichie TRADUTORA Julia Romeu EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 39,90 (240 págs.) * Os personagens de “No seu Pescoço” parecem gravitar em torno da pergunta: “Qual África?”. Quais identidades, territórios, relações interpessoais vislumbramos quando nos aproximamos da África contemporânea? Nos 12 contos que compõem este volume, Chimamanda Ngozi Adichie, premiada autora de “Americanah” e “Hibisco Roxo”, nos faz folhear um álbum de registros formado pelas consequências da neocolonização, dentre elas a corrupção endógena aos governos autoritários e o surgimento de novas identidades culturais tensionadas pelo Ocidente. Profissionais liberais, estudantes nigerianos em universidade americanas, jovens escritores, mulheres de homens poderosos, empregadas domésticas carregam consigo o desassossego de não pertencerem integralmente a nenhum espaço ou temporalidade. Em certo sentido, são espectros, como no conto “Fantasmas”, no qual um professor universitário evoca a ancestralidades das crenças de seu povo para confrontar o presente. “Talvez, eu devesse ter me abaixado, pegado um punhado de areia e atirado nele, como meu povo faz para ter certeza que uma pessoa não é fantasma”. Temporalidades, memórias pessoais e coletivas se cruzam a todo instante no intuito de desmanchar qualquer compreensão facilitada dos nigerianos. É a alteridade, estratégia usada por Chimamanda também em seus romances, que deflagra a reflexão sobre qual lugar esses personagens ocupam em um cenário marcado pela superposição da modernização e da miséria não são excludentes. Não é possível deixar de notar uma íntima semelhança com a realidade brasileira, nesse aspecto. Mas o quadro social só é apresentado na medida que interfere na produção de subjetivação dos personagens. Os sujeitos aqui lutam para não serem reduzidos a nomenclaturas que pouco revelam sobre a complexidade dos encontros, das identidades que deslizam diante do outro. Exemplar, nesse sentido, é o conto “Uma Experiência Privada”. Refugiadas em uma loja abandonada, uma muçulmana haussa e uma nigeriana igbo, cristã e cosmopolita, desenvolvem uma efêmera cumplicidade, enquanto lá fora, nas ruas da cidade de Kano, mulçumanos hausas atacam cristãos igbos a machadadas. Desenvolve-se ali a escuta, o cuidado dos ferimentos, a troca de pequenas intimidades femininas, em uma estranha familiaridade em contraponto ao vandalismo e a matança nas ruas. “Um conflito étnico com matizes religiosos”, sintetiza a rádio BBC sobre o conflito nas ruas, mas a imagem contraposta pela narradora e a dos cadáveres sem nome. “Pois tudo foi embrulhado, desinfetado e diminuído para caber em tão poucas palavras, todos aqueles corpos.” Assume-se a impossibilidade da síntese e o fracasso da escrita como plano conciliatório. Por isso, os afetos aparecem interrompidos, pela morte, pela imigração para o “paraíso” americano ou pela certeza de que o ocidente se relaciona com uma imagem estereotipada. Assim, o futuro patrão de Kamara, uma pós-graduanda recém chegada aos EUA, um judeu branco casado com uma afrodescente, não se envergonha em elogiar o inglês da nigeriana. “Ela fica irritada com a perplexidade de Neil, o fato de presumir que a língua inglesa, de alguma maneira, era propriedade dele.” Em “No seu Pescoço”, Adichie nos lembra que a África contemporânea é construída, em grande parte, pelos discursos e imagens produzidos pelo Ocidente. Romper essa representação uniforme é a grande obra que está sendo escrita pelos escritores africanos negros.