Nosso grande problema é político, diz Piketty em palestra

Astro entre os economistas por seu trabalho sobre desigualdade publicado em 2014, o pesquisador francês Thomas Piketty está hoje muito mais preocupado com a política. Mais especificamente, em como criar novas estruturas políticas. “A democracia eleitoral não consegue mais produzir desenvolvimento em que a grande maioria obtenha bem-estar”, disse mais de uma vez em conferência no Fronteiras do Pensamento na noite desta quarta (27). Durante uma hora e dois minutos, para uma plateia cheia e em inglês com forte sotaque e entonação francesa (em que “this” soa como “zis” e “high” soa como “ai”), ele tentou ir além das conclusões centrais de seu trabalho mais famoso, publicado em “O Capital no Século 21”. Resultado de seu doutorado na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais da França e na London School of Economics, a obra analisa dados de vários países do mundo e sustenta que a desigualdade disparou nas últimas décadas principalmente porque os muito ricos se apropriaram de uma parcela ainda maior da riqueza. Sua pesquisa foi comentada e criticada por economistas de várias linhas, tanto pela metodologia usada (que precisou “uniformizar” dados díspares para poder compará-los) quanto pelas possíveis conclusões a serem tiradas dos resultados. VERDADES RELATIVAS Pela ótica econômica, as principais questões do debate têm sido se a desigualdade é um mal em si, capaz de causar males como retardar o crescimento ou atrapalhar a eficiência econômica. Afinal, se os pobres também estiverem enriquecendo, que mal faz se os mais ricos também ficam mais ricos? Em vez de combater a desigualdade, não seria melhor combater a pobreza? Tal discussão não preocupa Piketty. “Nós, das ciências humanas, não temos verdade absoluta sobre nada. Todos fazemos recortes das realidades. Para mim, o que importa agora é que sejamos capazes agora de olhar para o que ocorreu antes e tirar lições para evitar novos erros no futuro. E a história deixa claro que o cerne da desigualdade não é técnico, mas político.” Uma das lições enunciadas por ele é a de que a desigualdade não promoveu crescimento no passado, e que o desenvolvimento na Europa Ocidental e nos Estados Unidos só aconteceu depois de graves crises políticas, incluindo guerras, que obviamente não queremos que se repitam. PANELA DE PRESSÃO Mas está no fogo uma panela de pressão política e social, afirma o pesquisador: os fluxos de capital amplificados pela globalização impedem que os países resolvam internamente a redistribuição de recursos. Isso abriu a porta para os que prometem proteger os “deixados para trás” impedindo a atuação de outros igualmente pobres: imigrantes, pessoas de outras etnias ou outras regiões. “Não é determinismo, mas estratégia política. O discurso viável para apelar aos destituídos hoje é o do nacionalismo e o da raça. Precisamos criar novas instituições que permitam redistribuir o acesso a educação de qualidade, que leva a oportunidades e a bem-estar social.” Como toda política pública tem preço, a principal solução defendida por Piketty para financiar um novo modelo tem sido impostos altos sobre os muito-muito-ricos (o 1% mais rico da população) e, mais especificamente, sobre a herança. Nesse ponto, Piketty se aproxima de intelectuais americanos que vêm promovendo o ideal do Novo Progressismo, como define o professor de Harvard Cass Sustein, um dos conselheiros do ex-presidente americano Barack Obama, que o francês já declarou admirar. Em termos muito simples, trata-se de discutir uma engenharia social que permita ao mesmo tempo manter a inovação e o vigor econômico e garantir a todos direitos básicos como educação de ponta, trabalho com remuneração decente, acesso a serviços de saúde. As propostas de Sustein passam também por decisões sobre impostos, mas não só (o artigo em que a apresenta a ideia pode ser lido aqui ). Na parte de perguntas, o francês mencionou trabalho recém-publicado pelo World Wealth and Income Database —instituto do qual ele é um dos diretores—, que conclui que a desigualdade de renda no Brasil não caiu entre 2001 e 2015 e permanece em níveis “chocantes”. ELITE BRASILEIRA O pesquisador ressaltou não ter pretensão de dar lições ao Brasil. “Mas a elite brasileira pode ser mais esperta e aprender com o outras já fizeram”. Entre os pontos está “pagar algo mais que ínfimos 4% sobre heranças bilionárias e contribuir para melhores serviços públicos que cheguem ao maior número de pessoas”. “Porque, afinal, o que todos nós queremos é que nossos filhos possam trabalhar e prosperar com saúde e em segurança, que tenham uma vida melhor. Sabotar o desenvolvimento do próprio país não é positivo.” NA ESTANTE Conhecido por ter incluído em “O Capital” trechos de romancistas que descrevem a sociedade do século 19, como Honoré de Balzac, Piketty encerrou o debate indicando, a pedido do mediador, uma obra literária que ambientasse bem a sociedade atual. Disse que a realidade hoje muda muito mais rapidamente, mas sugeriu o romance “L’invention de la Pauvreté” (a invenção da pobreza, na versão original francesa, sem tradução), de Tancréde Voituriez, em que um grupo de bilionários e economistas que querem fazer a pobreza desaparecer. “É um relato bem-humorado das contradições do capitalismo atual.” Criado há dez anos e realizado com apoio da Folha, o Fronteiras do Pensamento organiza conferências internacionais em Porto Alegre, São Paulo e Salvador. O objetivo é abordar temas que traduzam o mundo contemporâneo, e o conteúdo gerado, que inclui filmes, vídeos, livros e fascículos, pode ser consultado em www.fronteiras.com. L’INVENTION DE LA PAUVRETÉ AUTOR Tancréde Voituriez EDITORA Grasset QUANTO 22 euros (edição brochura, 448 págs.)