O dia em que o pai de uma militante se convenceu de que a ditadura torturava
Nuvens de chumbo cobriam o céu do Brasil nos anos 1960. Gritos de dor vinham de subterrâneos. Mas havia quem não visse ou não ouvisse. Havia também quem acreditasse em futuros dias de sol. E olhos jovens costumam ver melhor do que olhos velhos. Foi num tempo assim que cheguei à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O olhar entusiasmado de meus colegas contrastava com a expressão sombria de meu pai, um magistrado de direita que não acreditava em tortura. Dizia que era invenção da oposição. Durante um tempo, tentei convencê-lo da crueldade da ditadura. Pedi sua ajuda quando soube que um primo estava preso no quartel da Polícia do Exército. Meu pai foi até lá e voltou com a cara mais calma do mundo, dizendo que tinha conversado com o oficial responsável e que o sobrinho estava sendo muito bem tratado. “Mas você conseguiu vê-lo?” “Claro que não. Ele está incomunicável, mas o capitão me garantiu que ele está bem.” Meu primo passou 40 dias sob tortura violenta. Mas sobreviveu. Saí de casa para ajudar os companheiros que tinham aderido à luta armada. Não acreditava na eficácia dessa forma de luta, mas me dispus a colaborar. Encontrei abrigo numa casa elegante que dificilmente despertaria suspeitas. Passei um bom tempo cumprindo tarefas que estavam ao meu alcance e recebendo gente recém-saída da prisão que precisava ficar escondida. Os tempos continuavam sombrios, e a cegueira de meu pai, cada vez mais grave. Para fingir que não sabia o que eu estava fazendo, todo mês me mandava, por meio de um de meus irmãos, o “dinheiro para pagar minha ginástica”. As coisas foram andando aos trancos e barrancos até que, um dia, um menino da família que morava na casa me telefonou muito cedo: “Não saia de casa. A polícia está na porta”. Pela fresta da veneziana, eu podia ver os dois “armários” parados de cada lado do portão. Apavorada, me dediquei a picar papel e a tentar entender essa atitude anormal da polícia política. Descobri que todos os companheiros da minha organização estavam presos. E passei a esperar, repassando instruções de segurança, já que a perspectiva era a da mais cruel tortura. Meu medo era de não suportá-la e de entregar informações sobre meus camaradas. Aguentei firme durante três dias e, de repente, os homens foram embora. A partir daqui, este relato passa a vir das pessoas que conviviam comigo, porque perdi a memória. Dizem-me que comecei a ter febre alta e que minhas gengivas inchavam, sangravam e caíam aos pedaços. Não podia comer e fiquei muito agressiva. Diante desse quadro, meu irmão foi chamado novamente e combinou de me levar para a casa do meu pai. Durante a espera, levei um tombo no banheiro que me abriu o supercílio. Aquela clássica ferida de lutador de boxe que sangra muito, incha e deixa um enorme hematoma. Cheguei à casa do meu pai meio carregada e vi meu rosto num espelho, uma das poucas lembranças que tenho da época. Era a máscara da tortura. Muito magra, o olho inchado, parte do rosto roxo e a boca toda suja de sangue. Não me lembrava de nada e tinha alucinações coloridas. Como se tivesse tomado três LSDs. Meu pai chamou o velho clínico da família, que disse: “Ela tem escorbuto”. Resultado: fui tratada com duas injeções de vitamina C na veia durante uns 40 dias. Fui melhorando, com grandes buracos na memória. Um tempo depois, consegui sair do país, mas quando alguém me perguntava sobre a situação da minha pátria, não sabia o que responder. Posteriormente, reencontrei companheiros, costurei memórias, mas os buracos ainda estão lá. E meu pai? Passou a acreditar na tortura. Morreu achando que eu menti para ele e que tinha voltado para casa direto da cadeia. E até hoje, quando vejo alguém sofrendo um surto psicótico, me dá vontade de dizer: “Experimenta vitamina C”. MONICA HORTA, 69, é jornalista e astróloga.