Obra ‘Odiolândia’ expõe reações de ódio contra usuários de crack em SP
“Sejamos sensatos, tem que matar, senão não resolve.” A frase parece se referir a alguma bactéria ou outro agente infeccioso, mas foi registrada nas redes sociais no Brasil em referência a pessoas: os usuários de crack que circulam pela região central da cidade de São Paulo. A morte, a tortura e o extermínio foram abertamente evocados em comentários sobre as operações realizadas, em maio e junho deste ano, pela Polícia Militar do governo Geraldo Alckmin (PSDB) e pela gestão João Doria (PSDB) na cracolândia. Alvo de críticas, as ações foram celebradas em milhares de postagens, muitas delas com mensagens de ódio. Garimpados pela artista Giselle Beiguelman, esses comentários se tornaram a matéria-prima de “Odiolândia”, obra que integra a exposição “São Paulo Não É Uma Cidade – Invenções do Centro”, em cartaz no Sesc 24 de Maio. “Tive notícia das operações pelas redes porque estava fora do país, e me impressionou muito o teor das postagens”, conta Beiguelman, pesquisadora e também professora da Faculdade de Arquitetura da USP. “A obra nasceu de um corpo a corpo com os comentários, que fui documentando e salvando no computador.” O resultado do trabalho é um vídeo em que 20 frases correm em letras brancas numa tela preta dentro de uma sala escura. Ao fundo, ouve-se o áudio de uma das operações realizadas, com o som de seus gritos e bombas. “Retirar as imagens das operações permitiu que a violência desse imaginário do ódio viesse à tona com toda a sua contundência”, afirma. A primeira versão de “Odiolândia” tinha 50 minutos. Ao longo de dois meses, Beiguelman foi destilando o ódio dos comentários até chegar a uma versão de cinco minutos. “O que publicizei é ínfimo em termos de quantidade. Mas ninguém aguentaria mais do que isso. E eu tinha a preocupação de reter as pessoas e fazê-las encarar essa questão”, conta a artista, que revela ter ficado noites sem dormir durante o processo. “Tudo era muito pesado.” O impacto das frases nos visitantes da exposição é evidente na expressão de quem deixa a sala de “Odiolândia”. Lívida, a publicitária Thais Alves, 30, mal conseguia falar: “É chocante. Vou sair para respirar um pouco”. O estudante de moda Murilo Ashiguti, 21, não tolerou os cinco minutos do vídeo. “Não aguentei. É muito ódio. Como alguém pode pensar essas coisas?”, espantou-se. “A obra revela um distanciamento do outro e uma falta de informação muito grande, além de mostrar o que as pessoas são capazes de manifestar a partir de um computador, por trás das máscaras das redes sociais”, diz o estudante Eloy Mansani, 21, que assistiu ao vídeo até o fim. Entre os comentários que integram o trabalho estão: “Era melhor ter deixado todos juntos e testar nesses zumbis algumas armas químicas ou simplesmente tacar fogo em todos” e “A solução para esses viciados e traficantes é colocá-los no navio e soltá-los em alto-mar. A maioria desses viciados são nordestinos”. “À cracolândia são somados bodes expiatórios como nordestinos, muçulmanos, comunistas e gays. Fala-se abertamente em limpeza étnica, purificação da sociedade pelo extermínio de terminados indivíduos, e ‘soluções finais’. Tudo sem nenhum constrangimento”, diz a artista. A poucos metros da sala de “Odiolândia”, a obra de Igor Vidor alerta para os perigos desse tipo de desejo ao resgatar a história da Operação Camanducaia, ocorrida em 1974, na ditadura militar. Na ocasião, policiais levaram à força quase cem crianças e adolescentes em situação de rua do centro da capital paulista. Eles foram espancados e depois abandonados na cidade mineira de Camanducaia. – SÃO PAULO NÃO É UMA CIDADE —INVENÇÕES DO CENTRO ONDE Sesc 24 de maio, 5º andar QUANDO De ter. a dom, das 9h às 21h; até 28.jan de 2018 ENTRADA Gratuita ENDEREÇO Rua 24 de maio, 109, República (centro)