Somos todos doentes

Aqui estamos outra vez divididos. De um lado, a bancada evangélica pregando a cura gay e buscando, com êxito, apoio das instituições. Do outro, os que concordam com a ciência e entendem que a homossexualidade não é diferente da heterossexualidade. “Para criaturas tão pequenas como somos essa vastidão é suportável apenas através do amor”, escreveu o astrônomo Carl Sagan há 30 anos. E, em 2017, talvez já não devêssemos estar debatendo tipos de relações amorosas porque é aceitável que adultos se relacionem de forma íntima desde que os dois (ou os três, sabe-se lá) assim desejem. Se alguma coisa faz com que eu me sinta bem e não causa mal a nenhum outro ser ou à Terra, ela é correta. E superemos isso para, juntos, podermos suportar a vastidão sobre a qual Sagan falou. Até porque não há debate possível quando a arena passa a ser a religiosa: é preciso apenas que se respeite a crença alheia. É aqui, portanto, que a estrada termina: crenças não devem ser impostas, devem ser vividas. Trata-se da diferença entre a moral e o moralismo: impor uma crença ao modo de vida de outra pessoa é moralismo, e o moralismo sempre carrega com ele um tanto de recalque, um tanto de inveja e pouquíssimo de moral. É como se gays e lésbicas saíssem por aí questionando o que causa a heterossexualidade e buscando formas de corrigi-la porque, afinal, a heterossexualidade não faz sentido para mim. Permitir que a homossexualidade seja considerada doença é desumanizante com milhões de pessoas porque rouba delas a dignidade, e não há violência maior do que não reconhecer a humanidade de alguém. Mas é árdua a batalha contra a estupidez -e vamos considerar estupidez qualquer ideologia que se oponha a forças como o amor, a arte e a liberdade. Existe, claro, uma doença relacionada à homossexualidade: chama-se homofobia, e ela pode matar (em 2016 foram registradas quase 400 mortes diretamente ligadas à homofobia). “A homofobia é uma forma de odiar tudo o que não é patriarcado”, escreveu Rebecca Solnit em seu “A Mãe de Todas as Perguntas”; assim como o racismo, a misoginia, o classismo -doenças graves que há séculos contaminam muitos em nossa sociedade. O que talvez devêssemos estar debatendo, em nome de um mundo melhor, é a qualidade das relações, e não o tipo de relação que queremos impor uns aos outros. “Uma relação humana honrosa -uma na qual as pessoas tenham o direito de usar a palavra amor- é um processo; delicado, violento, muitas vezes torturante para os envolvidos, um processo de aprimoramento em relação às coisas que um pode dizer ao outro”, escreveu a poetisa lésbica Adrienne Rich. Mas para viver a experiência em sua totalidade precisamos de tempo, e nesse corre maluco, agachados nas trincheiras que construímos para nos isolar, entregues aos mais variados escapes -de drogas a tecnologias- deixamos de nos ver, de nos aprofundar em conversas, de olhar uns nos olhos dos outros. “Atenção é a forma mais rara e pura de generosidade”, disse Simone Weil. E uma sociedade incapaz de praticar generosidade é uma sociedade profundamente adoentada. MILLY LACOMBE, 50, é autora do romance “O Ano em Que Morri em Nova York” (Planeta), colunista das revistas Trip e Tpm, e lésbica PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para [email protected] Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamentos contemporâneo.