Versão teatral de ‘Grande Sertão’ busca a universalidade de Guimarães Rosa
Sertão é o sozinho. É onde o criminoso vive seu cristo-jesus. O sertão tem medo de tudo. É onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. O sertão está em toda parte, é do tamanho do mundo. Com definições tão amplas, Guimarães Rosa mostrava que o cenário de seu “Grande Sertão: Veredas” (1956) não estava restrito a um só tempo ou espaço. A sua história do jagunço Riobaldo é também a história do homem. É nesse sertão universal que a diretora Bia Lessa se inspira para sua versão teatral da obra, com estreia marcada para este sábado (9) em São Paulo –em janeiro, a montagem segue para o Rio. Trata-se do retorno de Lessa ao teatro após quase dez anos longe dos palcos (ela fez seu “Exercício nº 2: Formas Breves” em 2009). Também é uma volta da diretora à obra rosiana: é da encenadora a exposição sobre o livro que abriu o Museu da Língua Portuguesa em 2006. “Glauber [Rocha], de alguma forma, inventa um Brasil. O Euclydes [da Cunha] também. O Guimarães não fala no Brasil, apesar de ser brasileiro”, diz Lessa sobre as representações do sertão na arte nacional. “Quando ele coloca que o sertão está dentro da gente, e o sertão está em toda a parte, ele quebra essa espinha dorsal [do Brasil] e vai para um outro lugar.” DISCRETO Para o seu espetáculo, Lessa criou uma estrutura no espaço de convivência do Sesc Consolação. A cenografia de Camila Toledo (feita com colaboração do arquiteto Paulo Mendes da Rocha) é formada de andaimes, que lembram uma gaiola. É nesse espaço que são alocadas as cadeiras do público e acontece toda a encenação. Em cerca de duas horas e meia de peça, vemos a saga de Riobaldo (Caio Blat), passando por seu amor reprimido por Diadorim (Luiza Lemmertz), as batalhas com os jagunços, sua sede de vingança contra Hermógenes (Leon Góes) e o pacto do protagonista com o capeta. O palco é limpo, quase todo preto, assim como os figurinos, realçados apenas em alguns detalhes, como um tecido plissado que lembra cartucheiras. A luz, discreta, quase não muda, e os dez atores nunca saem de cena. São acompanhados de 256 bonecos de pano, que vão inundando o palco como o exército de jagunços e o rio de corpos, vítimas daquelas guerras. Os expectadores acompanham tudo munidos de fones de ouvido, que trazem, em cada uma das saídas, as falas dos atores, os sons daquele sertão e a trilha sonora criada por Egberto Gismonti. TRANSPOR Lessa chama de “transposição”, não de “adaptação” o que fez ao texto. Há cortes, mas ela coloca as palavras de Rosa na boca dos atores. Ainda quis levar à cena todos os elementos do romance. O narrador, que no livro se dirige a um visitante do sertão –tentando convencê-lo, e convencer-se, de que o Diabo não existe–, aqui fala ao público. Os temas, diz ela, estão todos presentes: o amor, a morte, a guerra, a metafísica, os questionamentos humanos. Como a obra de Rosa trabalha com ambiguidades e incertezas (nem Riobaldo sabe ao certo se houve um pacto com o “Cramulhão”), Lessa quis reforçar a dúvida. A cena em que o protagonista vende sua alma, por exemplo, é feita com o personagem falando sozinho, sem deixar claro se Diabo está ou não ali. A imagem do “rio caudaloso” e o fluxo contínuo do livro, que não é dividido em capítulos, termina com um símbolo do infinito e tem a cronologia emaranhada, refletem-se numa montagem quase sem transições, com cenas sem divisões marcadas. O vocabulário rosiano, repleto de neologismos e de uma sintaxe própria, está lá, mas cada ator fala com o seu próprio sotaque, não se busca um falar mineiro. “Acho que, toda vez que você regionaliza, acaba empobrecendo, limitando a própria obra”, afirma a diretora. A natureza, outro personagem de “Grande Sertão”, é incorporada aos atores, que por vezes são plantas ou bichos – até os pés e as mãos dos bonecos são animalescos. Além da montagem, a instalação onde a peça acontece ficará aberta para visitas nos horários em que não há sessão. Ali estarão expostos em televisores parte do processo de criação do espetáculo, edições de “Grande Sertão” e áudios a respeito da obra, além dos bonecos de pano, que também representam a morte de Diadorim. “É um convite ao sertão, ao espaço metafísico da obra”, comenta a encenadora. * GRANDE SERTÃO: VEREDAS QUANDO qui. a sáb. e feriado, às 20h30; dom., às 18h30; até 22/10 ONDE Sesc Consolação. r. Dr. Vila Nova, 245, tel. (11) 3234-3000 QUANTO R$ 12 a R$ 40 CLASSIFICAÇÃO 18 anos INSTALAÇÃO a partir de 11/9, seg. a qua., das 11h às 21h30; qui. e sex., das 11h às 19h30; sáb., das 10h30 às 19h; grátis; livre